A linha tênue entre o super-heroísmo e o anti-heroísmo
e Mary Anne
Diante do contexto que cerca os conceitos tratados neste artigo, é válido ressaltar que os mesmos são passíveis de diversas interpretações, assim como as características que fazem parte da personalidade dos personagens apontados. Sendo assim, vi por bem convidar a Mary Anne para contribuir com o artigo.
Durante muitos momentos de Xena, podemos ter a sensação de conflito que os dois conceitos geram. Há quem diga que Xena é muito mais do que uma super-heroína, ou até que ela seja apenas anti-heroína. Mas para analisarmos mais profundamente esses conceitos e extrairmos tudo – ou uma boa parte – do que Xena nos apresentou sobre isso, além de citar, obviamente, outros personagens bastante conhecidos na cultura popular, é necessário que conceituemos anti-herói:
“é o termo que designa o personagem caracterizado por atitudes referentes ao contexto do conto contemporâneo, mas que não possuem vocação heróica ou que realizam a justiça por motivos egoístas, pessoais, vingança, por vaidade, por matar ou por quaisquer gêneros que não sejam altruístas, ou seja, é o antônimo da idéia que se tem de herói. A maoria dos anti-heróis da ficção são mais populares que os heróis” (Wikipédia).
Como podemos notar, o próprio conceito de anti-herói é bastante complexo. Tão complexo que é passível de diversas interpretações. Este artigo mencionado acima na Wikipédia dá exemplos de quem pode ser conhecido como anti-herói na cultura popular. Apesar de concordar com alguns, acho muito preto e branco defini-los assim, porque a maioria deles possui características, também, de super-heróis.
A proposta deste artigo é analisar, a partir de diversas interpretações, sobre quem é super herói e porquê.
Iniciemos analisando as personagens centrais da nossa trama preferida, Xena – A Princesa Guerreira:
Durante grande parte do seriado, podemos perceber que Xena apresentou características dos dois gêneros, embora, talvez, anti-herói tenha definido mais o seu caráter do que super-herói. Exemplos disso, respectivamente, podemos citar os bem produzidos ‘One Against Na Army’ e ‘A Friend In Need’; no primeiro momento, percebemos claramente a incapacidade, sem reservas, da personagem àquele ponto, de renunciar à vida ao lado da pessoa que mais amava, sacrificando uma cidade, que seria invadida pelos persas: Gabrielle; no segundo, basicamente pelo fato de ter que suicidar-se a ponto de salvar milhares de almas aprisionadas por um super demônio, e renunciar ao que mais amava em troca disso, sendo altamente altruísta e sentindo as consequências disso na própria alma: Gabrielle. O que, por si só, merece um prêmio só por mostrar de forma tão crua o desenvolvimento da personagem, uma das características que fez a série tão marcante. Outros exemplos de anti-heroísmo possíveis de destaque: ‘Death Mask’, ‘The Deliverer’, ‘The Debt’, ‘Maternal Instincts’, ‘The Bitter Suite’, ‘Sacrifice’, ‘Crusader’, ‘The Ides of March’, entre outros. O importante é analisar quando que as ações deixam de ser pelo bem maior, e passam a se configurar por motivos egoístas e fúteis ou de foro íntimo, e passam a fugir da esfera ‘do que se deve fazer’.
Em segundo lugar, é lógico, podemos apresentar Gabrielle. Embora muitos achem que a personagem foi caracterizada para ser absoluta e unicamente um contraponto à Xena, é possível verificar características de anti-herói nela também, muito poucas, se comparadas às de Xena, mas ainda existentes. Em ‘Return of Callisto’, Gabrielle se depara pela primeira vez durante a série com um sentimento de vingança; ela quer, de qualquer maneira, sacrificar sua inocência e sua luz em prol de um motivo categoricamente egoísta: vingança sobre Callisto, personagem que dá o título ao episódio. Embora ela não tenha coragem de concluir com o objetivo apresentado anteriormente, o ânimo da personagem, até certo ponto, caracteriza-se como um típico de anti-herói, pelo fato dela querer isso para satisfazer o seu ódio, e não por um bem maior. Em outros momentos como ‘Who’s Gurkhan’, estão presentes essas características de anti-herói, também, por ter conhecimento de que a mãe e o pai foram brutalmente assassinados; e novamente, podemos verificar que Gabrielle não vai até o final, porque não age com impulso, o que faz com que as características de uma super-heroína predominem em sua personalidade. Mas não é preciso que a gente vá tão longe, já que em ‘The Ides of March’ ela trata de aniquilar alguns romanos para salvar Xena da morte.
Além disso, faz-se importantíssimo mencionar o brilhante ‘When Fates Collide’, que nos mostra a figura de Gabrielle como uma anti-heroína, disposta a destruir o tear em prol de sentimentos provenientes de amor, mas totalmente egoístas, mesmo a despeito do alerta feito pelos Destinos de que destruir o tear, destruiria tudo.
Quem eu cito em terceiro lugar, é uma personagem bastante conhecida na cultura popular: Selina Kyle (Mulher-Gato). E aí, deixo um alerta enorme para que quem não assistiu ao terceiro filme da série de Christopher Nolan, “Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, passe longe do parágrafo que vem depois da foto, pois ele pode revelar fatos fundamentais presentes na projeção.
No que concerne à Senhorita Kyle, apresentada de diversas formas tanto na TV, nas HQs, quanto no cinema, prefiro me restringir à algumas HQs e ao terceiro filme da brilhante trilogia de Nolan, interpretada, brilhantemente, por Anne Hathaway (‘O diabo veste prada’ e ‘Amor e outras drogas’). Tratamos aqui de mais uma personagem onde as características de anti-heroína se sobrepõem às de super-heroína. Vocês devem estar se perguntando: a Mulher Gato como super-heroína? Você deve estar brincando. Não, não estou. Antes da vilã interpretada por Michelle Pfeifer, e outras concepções bastante cartunescas mostradas em desenhos animados e séries de TV, a personagem tinha, sim, um pouco de super-heroína. Em diversos momentos, o Batman tenta regenerá-la e, há alguns em que os dois trabalham, sim, em prol do bem maior, como em ‘O Cavaleiro das Trevas Ressurge’.
Embora tenha contribuído significativamente para o time de vilões durante a projeção, como roubar as digitais de Bruce Wayne para concretizar um plano de fazer com que ele chegue à ruína, e entregar o herói a Bane em uma bandeja de prata (para que encontre sua queda), há um momento no qual decidida a fugir para se salvar, ela acaba voltando e salvando o herói, em um momento crucial do filme, se tornando uma das mais fortes aliadas do Homem-Morcego. O que resulta em um dos pontos mais interessantes e bastante discutido na trama, bem útil para interpretar o conflito causado pelo conceito herói e anti-herói: em que ponto devemos fazer algo para fugir do barco e salvar a si próprio, ou ajudar o próximo? Bem, talvez, esse seja o conflito mais recorrente nos personagens que dividem essas características. A dualidade é evidente quando tanto nas HQs, quanto nos filmes, e jogos do Homem-Morcego, a Mulher Gato se encontra em um impasse, entre se salvar, ou salvar o Morcego e, assim, proteger o bem maior.
Dando continuidade à nossa lista, mencionamos a personagem Cara, de Legend of the Seeker (e Sword of Truth ). Conhecida por muitos fãs das séries de Sam Raimi e Rob Tapert, Cara foi apresentada como a servidora mais leal a Darken Rahl, e, como acabou acontecendo na série, Richard Rahl. Treinada por uma linha de Mord Sith, ela não hesitava em fazer qualquer coisa a mando do Lorde Rahl vigente à sua época (devido ao vínculo que foi gerado por seu laço com a família Rahl).
A personagem ficou conhecida apenas no season finale da primeira temporada, obviamente, como uma vilã, que acabou se convertendo em uma anti-heroína, também com características de super-heroína (na segunda temporada). Seus objetivos ficam claros já a partir de sua primeira participação na série, que são exterminar Richard a mando de Darken Rahl, para evitar o cumprimento de uma profecia. Apesar disso, a personagem demonstra desde então um inclinação a se tornar uma anti-heroína, já que não pensa duas vezes ao tomar decisões em benefício próprio, qual seja, de se aliar a Richard e fazer com que o mundo volte a ser o que era, para evitar que sua raça seja exterminada (e aí, a personagem deixa o posto de vilã, porque, mesmo que por motivos egoístas, ela toma uma atitude que indiretamente beneficia muito mais gente).
Sua personalidade muda de figura, quando na segunda temporada, esta decide seguir e mostrar lealdade ao novo Lorde Rahl, Richard Cypher, auxiliando em sua jornada para encontrar a Pedra das Lágrimas e selar o véu que se abriu entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. A partir daí, ainda que características de anti-herói tenham sido predominantes na personagem, ela passa a ser uma super-heroína, já que, por acatar ordens do seu mestre, ela cumpre com o dever de lutar pelo bem maior, independente de sua concordância ou não, estando muitas vezes disposta a se sacrificar pelo grupo e criando um forte vínculo de amizade com ele, não se restringindo apenas à sua ligação à linhagem Rahl. Através disso podemos perceber uma grande evolução na personagem, que acabou caindo nas graças do público em geral por ser tão complexa.
É impossível escrever um artigo desses sem mencionar heróis propriamente ditos como Homem-Aranha, Super-Homem, e, ainda, o próprio Hércules da concepção de Sam Raimi e Rob Tapert.
Mas iniciemos a discussão sobre o cabeça de teia: tudo começa, como todo mundo bem sabe, com uma picada de uma aranha, que dá poderes especial ao adolescente Peter Parker. Embora não seja bastante conhecedor do Peter Parker das HQs, o pouco que pesquisei sobre o personagem, notei que, sim, as características de herói se sobrepõem às de anti-herói – ainda que estas existam. Para não adentrar em um território desconhecido e bastante perigoso, prefiro me restringir a tecer comentários acerca da trilogia cinematográfica adaptada por Sam Raimi (‘Uma noite alucinante’, ‘Xena’, ‘Hércules’ e ‘Arraste me para o inferno’) e, posteriormente, por Marc Webb (500 dias com ela).
Quem já teve a oportunidade de conferir ambas adaptações, percebe que a essência do herói permanece: a de super-herói. Porém, nas duas adaptações, somos apresentados a conflitos adolescentes e aos conflitos de super-heróis que, sempre que perdem um ente querido, têm que decidir se vai agir por força de um bem maior, ou por um desejo insaciável de vingança.
O Peter primeiramente interpretado por Tobey Maguire, evidentemente possui uma personalidade mais densa em decorrência dos caminhos que decide percorrer; o que nos permite, por si só, inferir que possui mais características de anti-herói, em determinados pontos, do que o Peter interpretado por Andrew Garfield. Não é a toa que sua jornada resulta nos acontecimentos do patético Homem-Aranha 3, onde a simbionte se apodera do seu corpo e o leva para o lado sombrio da força, despontando em uma batalha interna entre o bem e o mal.
A despeito dos conflitos enfrentados na adolescência, e a partir do incidente que o torna um ser humano com poderes sobre-humanos no desnecessário O Espetacular Homem-Aranha, o Peter Parker de Andrew Garfield, pelo que foi apresentado, parece lidar melhor com esses conflitos. A construção do personagem nos mostra que o desejo de vingança ora presente pelo assassinato de sua figura paterna, Ben Parker, são facilmente superados pelos ímpetos de salvar a cidade, embora para isso, precise, primeiro, salvar seu grande amor, Gwen Stacy, interpretada de forma doce por Emma Stone. Mais uma vez podemos verificar que as características de super-herói se sobressaem em relação ao trilogia de Sam Raimi.
O nosso próximo alvo de análise talvez possua o super-herói estampado em sua mente, pois se trata de um bom samaritano e que vive com um único ideal: proteger os oprimidos. Super-Homem, na pele de Clark Kent, talvez seja o personagem que mais faça jus a esse título. Em todas as histórias do personagem, vemos claramente que seus objetivos se resumem a ser um bom samaritano e nada mais que isso. Enviado para a terra em uma nave após a explosão de seu planeta natal, sua única preocupação parece ser com os habitantes do planeta terra, se tornando, talvez, uma das figuras mais humanas que o universo das HQs já conheceu.
Diversas vezes o intérprete do personagem foi apresentado na TV, no sucesso dos anos 90: Lois & Clark, interpretado por Dean Cain; e mais tarde em Smallville, intepretado por Tom Welling. Mas não podemos esquecer a figura que o imortalizou nos cinemas, Christopher Reeve que, após sua morte, fez a Warner ir à caça de um ator parecidíssimo com ele, Brandon Routh, para vestir a capa do Super-Homem novamente nos cinemas, depois de tanto mento, resultando num fiasco enorme. Um reinício da franquia do Homem de Aço é prometido para os cinemas em 2012, interpretado por Henry Cavill e dirigido por Zack Snyder (‘Watchmen’, ‘Sucker Punch’) e produzido por Christopher Nolan (‘A origem’, ‘Amnésia’ e ‘Trilogia do Batman’).
Se tem uma figura que merecia estar nesse artigo, não exatamente pelo sucesso absoluto de sua série de TV, mas mais pelo significado, é o Hércules de Sam Raimi e Rob Tapert, interpretado por Kevin Sorbo. O outro herói que não mata ninguém quase não possui características de anti-herói, foi ‘responsável’ pela regeneração da nossa Princesa Guerreira: Xena.
Seguindo a linha de super-heróis que não hesitam em ajudar, em Hércules temos outro bom samaritano, incapaz de matar alguém com as próprias mãos. O grande problema disso, é que os roteiristas acabaram criando um personagem extremamente raso e limitado, que não é muito suscetível a grandes discussões, mais um motivo pelo qual Xena se destacou entre as séries dos anos 90.
O conceito clássico de herói que teve seu berço nas literatura Grega acabou sendo modificado através dos anos, principalmente pela ocidentalização do tema. Antes considerado uma criatura de grandes feitos e caráter essencialmente nobre, agora os heróis que conhecemos nem sempre são detentores dessas caraterísticas “super-humanas”, já que passaram a não corresponder mais aos anseios do homem, que passou a valorizar não mais apenas um arquétipo de perfeição, mas também os sentimentos mais íntimos da alma humana, que nem sempre são nobres.
Para que um personagem tenha sucesso, é necessário que o leitor/espectador consiga conectar-se à ele de algum modo, e como nós, na características de humanos sujeitos à falhas, nos identificaríamos com personagens que estão completamente acima de nós?
Como um herói de essência épica, pronto e acabado, sobreviveria numa sociedade que sofre constantes transformações, nas quais muitas vezes os conceitos de certo e errado se tornam confusos?
Talvez seja nesse aspecto que o Hércules de Tapert e Raimi tenha pecado e caracterizado sua “ruína” enquanto programa televisivo.
O herói de hoje é aquele personagem que não se deixa flutuar nas ações do destino, mas movimenta a ação da narrativa usando como combustível uma causa geralmente altruísta. O que não quer dizer que ele não cometa erros ou não apresente fraquezas, que o aproximam dos falhos humanos, e é por isso, que principalmente nas obras contemporâneas a linha entre herói e anti-herói se torna ainda mais tênue, fazendo com que vários personagens acabem apresentando uma dualidade de arquétipo, os caracterizando das duas maneiras.
Um exemplo disso é um personagem presente na cultura britânica há décadas, o Doctor, da série Doctor Who. O próprio nome escolhido por esse Senhor do tempo, “Doutor” (que é apenas um pseudônimo, o nome do Doutor nenhuma criatura no universo sabe), caracteriza um personagem com um desejo inerente de curar as dores do universo. De consertar o errado e dar uma chance de regeneração a todo ser vivo. No entanto, a exposição à essas dores do universo durante centenas de anos, fazem com que o personagem desenvolva uma grande amargura e um lado “negro” o qual ele tenta sufocar para não ferir as criaturas com a “ira do Senhor do Tempo”, mas nem sempre tem sucesso nessa tentativa. As primeiras encarnações do Doctor, mostravam um ser arrogante com certo desprezo pela raça humana inferior, ainda que se sentisse na obrigação de protegê-la. Através das décadas ele se torna mais humano e mais motivado pela compaixão, contudo essa humanização também traz sentimentos não tão nobres.
As reações emocionais da nona encarnação do Doctor, por exemplo, muitas vezes se mostram fora de proporção, punindo criaturas severamente, muitas vezes motivado por questões pessoais, como é o caso dos Daleks, que fizeram com que o Doctor destruísse seu próprio planeta inteiro para vencer a guerra contra a raça alienígena.
A décima encarnação do Doctor se auto-define “Alguém que não dá segundas chances. É esse o tipo de homem que eu sou”, não hesitando em destruir a carreira da fictícia primeira ministra da Inglaterra após ela lhe contrariar em uma decisão.
Outro caso de personagem que demonstra essa dualidade, é a Noiva, de Kill Bill, porém ao inverso do exemplo acima, suas ações são quase que inteiramente motivadas por ódio e vingança, o que de cara faria ela se caracterizar como uma anti-heroína, no entanto nesse processo ela movimenta a ação, e ainda que não meça as conseqüências, tem um propósito individualmente nobre, que é recuperar sua filha, e mesmo deixando uma trilha de sangue e destruição por onde passa (não poupando nem mesmo uma menina de 17 anos), ela ganha a simpatia do espectador, que torce por seu êxito.
Acredito que todos possuem esse conflito de super-herói e anti-herói, que é um conflito inerente ao ser humano. Muitas vezes paramos para refletir sobre o que é certo e o que é errado, mesmo sabendo que não existe alguém no mundo que seja capaz de definir, realmente, quando estamos certos e errado. Tudo se baseia no caso concreto e em determinado contexto.
Dito isso, nada se torna absoluto. Muito menos a definição de super-herói e anti-herói.
Leituras complementares:
Quando a heroína deixava de existir – Por Mary Anne
Quando a heroína deixava de existir II – Por Mary Anne