Mary Anne M.W.
Esse não vai ser um texto feliz. Não vai contar uma história feliz. Vai contar uma história, que ainda que individual, é a história de muitos jovens. É a história de muitas crianças, adolescentes e adultos.
Meu pai costuma ter idéias fixas, do tipo que quando ele bota na cabeça, ele torra a paciência de todo mundo que for necessário até conseguir concretizar seus planos. A idéia fixa dessa vez foi “Quero assistir Marley e Eu”, ao que eu respondi “já chegou na locadora”. Contudo um dos problemas é que sua disposição para entrar numa locadora olhar por umas 10 prateleiras atrás do filme, não tem a mesma intensidade de sua idéia fixa, e a alternativa que ele acha para isso, é me incumbir de achar o filme, trazer pra casa, colocar no DVD (“porque eu não preciso aprender a mexer com essa tecnologia complicada”) e apertar play.
Nessa odisséia até a locadora após o trabalho, estava eu a andar entre as prateleiras até que me deparo com uma amiga dos tempos de colégio. Gi sempre foi uma menina esforçada ao máximo e feliz. Dotada de uma inteligência imensa, eu posso afirmar. Conheço-a desde meus 13 anos de idade, e dos 15 aos 17, estudamos juntas no ensino médio. Com ela e com Bruna (aquela à qual devo meu atual xenitismo) compartilhei a maior parte das encrencas que uma adolescente pode enfrentar dos 15 aos 17. Havia mais gente que fazia parte desse grupo, mas foram apenas pessoas que passaram por minha vida e com quem eventualmente perdi contato, mas Bruna e Gi, são as duas pessoas que eu sempre soube que fosse aos 15 anos, seja agora, ou daqui à 40 anos, ainda poderei chamar de amigas. Eventualmente, por intermédio da Gi, acabei conhecendo outra menina que se tornou minha amiga, a qual vou me referir aqui por A. Durante cerca de dois anos, tudo correu perfeitamente bem. Bruna, Gi, A. e eu éramos pessoas sem maiores problemas. Haviam algumas encrencas épicas com questões escolares, professores amebas e “comportamento indesejados” que apareciam vez ou outra, mas tirando isso, sempre fomos adolescentes normais e conscientes. E nós conhecíamos umas as outras. Pelo menos achávamos que conhecíamos.
Um parênteses para falar de amizades que mudam, em Xena Warrior Princess
Ontem assisti os episódios Sacrifice I e II e uma das coisas que eu não havia notado anteriormente é o quanto Gabrielle demonstra um empenho em salvar Seraphin, aquela menina que ela conhecia desde os 5 anos, mas que havia cegamente caído nas garras do culto à Dahak e à Esperança. A menina que um dia ela chamou de amiga e achou que conhecia, era uma criatura malévola, irritante, arrogante e cega pra realidade. Certamente Gabrielle deve ter pensado “Onde está a amiga que eu achei que conhecia?”. Ela não existia mais, e Gabrielle percebendo isso, viu que ela não poderia mais ser salva.
Retornando à história triste.
Desde que terminamos o ensino médio, o meu contato com Gi e com A. diminuiu consideravelmente. Com Bruna isso não aconteceu porque fizemos faculdade juntas por um tempo, e trabalhamos na mesma escola de inglês, logo, vejo ela quase todos os dias. Tenho orgulho de ver o que ela se tornou, alguém responsável, competente e esforçada. Gi teve seus momentos de tropeços numa vida “boêmia” de quem foi estudar em outra cidade e desistiu de uma faculdade, mas após ver os prejuízos, resolveu entrar na linha novamente. Coisa que supostamente A. também iria fazer (após se meter com um pessoal “radicalista” que cursava filosofia e ter reprovado em várias matérias) uma vez que ambas iriam dividir uma kit net em outra cidade e levar os estudos a sério. Essas foram as últimas notícias que tive sobre elas em janeiro desse ano. Torci para que ambas se encaminhassem, para que Gi se recuperasse do seu deslize na vida boêmia, e A. parasse com a atitude idiota adquirida por andar com pseudo-filósofos, de declarar guerra contra crenças alheias e achar que o mundo se divide em ESTUDANTES DE FILOSOFIA = criaturas superiores e RESTO DO MUNDO = criaturas incapazes de pensar.
Voltando ao começo da história.
Após ter cumprido minha missão de achar o filme que meu pai tinha pedido, olhando alguns títulos na prateleira de épicos, ergo os olhos e vejo Gi me olhando do outro lado da prateleira e sorrindo. Ela jogou a mochila perto do balcão e nos abraçamos expressando a saudade de meio ano sem se falar. Conversamos sobre fatos casuais, ela me contou sobre estar adorando o curso de história e ter conseguido uma bolsa pra fazer nutrição e como conseqüência, estar se matando ao fazer duas faculdades ao mesmo tempo. Disse que quer recuperar o tempo perdido e está levando tudo a sério dessa vez. Imensamente feliz, lhe disse que eu não tinha dúvidas de que ela se sairia bem em ambos os cursos. Conversamos mais casualidades e fatos aleatórios até que perguntei como estava A.
Os olhos de Gi ficaram vermelhos e ela disse “Da última vez que a vi, ela estava se drogando e roubando as coisas do apê pra conseguir dinheiro”. Meu queixo caiu em choque. Eu sabia que A. tinha se desviado e tinha certa fraqueza por bebida, que lhe rendia porres homéricos, mas uma notícia dessa era algo que eu jamais imaginaria. E então Gi me contou sobre a briga, a tentativa de tirar A. daquela vida, de tirar a venda que estava tapando os olhos dela, os conselhos que tentou dar e que foram retribuídos com agressões. Sobre A. e seus amigos viciados terem roubado vários bens do apartamento que elas dividiam, e ter roubado até o dinheiro que o pai de Gi mandava. Contou sobre como a situação ficou insustentável e elas brigaram, brigaram feio. Sobre como ela teve que tomar a decisão difícil, de desistir de A. Desistir de ajudar a amiga que ela conhecia desde os 11 anos. Sobre o ódio que se formou entre as duas. Sobre sua falta de opções… Contar para os pais de A. sobre as “aventuras” da filha com drogas pesadas e correr o risco de ser acusada de “difamar uma menina séria de família”? Ou pior, eles acreditarem, darem um jeito na filha e os amigos viciados de A., por vingança se voltarem contra Gi, que agora mora sozinha e não tem nenhum amigo ou familiar na cidade? A única opção: Desistir de A. Desistir de um monte de lembranças. Desistir de um monte de sonhos. Desistir de se importar. Eu, que convivi com A. por três ou quatro anos, fiquei chocada com essa notícia, porque ela era apenas uma menina normal. Como eu, como Bruna, como Gi. Mas Gi, que a conheceu, a aconselhou, a apoiou por mais de 10 anos, ficou devastada.
A maldita falta de cérebro ao usar o livre arbítrio.
E então eu faço uma retrospectiva mental e lembro-me de cinco anos atrás enquanto passávamos as manhãs partindo a cabeça de estudar, as aulas vagas estiradas no gramado da frente da escola falando de descobertas e planos futuros, as tardes em sessões de cinema em casa, vendo filmes, e falando de tudo. Falando de um futuro. Falando de amores e desamores. Falando de sonhos. E de como éramos privilegiadas por não nos resumirmos a falar de garotos e roupas o tempo todo, como boa parcelas das garotas de nossa idade estavam fazendo.
Aqueles foram “Anos Incríveis”, onde o futuro era distante e promissor. E onde éramos felizes e normais, dentro de um certo padrão peculiar.
Cinco anos mais tarde tudo aquilo virou pó. Caminhos tortuosos e escolhas erradas, talvez influenciadas por excesso de liberdade, talvez pela necessidade de se fazer parte de algo, destruíram amizades e sonhos.
Por que é tão difícil caminhar direito? Por que é tão difícil entender o bem supremo?
Outro paralelo com XWP…
Gabrielle tentou alertar Seraphin sobre o culto de sangue de Hope e Dahak. Mostrou a ela que eles eram maus. Mostrou que eram nocivos e não trariam absolutamente nada de benefícios a ela ou a humanidade. Tentou salvá-la por tantas vezes. E teve de desistir. Seraphin estava cega. Ela achava que “tinha encontrado sua turma”, que Gabrielle era quem “não entendia” que aquilo não era nocivo, tal qual um adolescente cegado pelas drogas. Nós sabemos qual foi o fim de Seraphin e do culto. E sabemos também, qual é o infeliz destino dos usuários de drogas.
A vida continua…
Hoje minha amiga Gi está morando em outro apartamento, sozinha, e bem longe do inferno que vivenciou nos últimos meses. Ainda chora por não ter conseguido ajudar a amiga, mas teve de seguir em frente com sua vida, porque os “anos incríveis” não voltam mais.
No começo eu disse que essa não seria uma história feliz. A ficção muitas vezes é triste, e de algum modo, arte e vida, se imitam mutuamente. Perdoem-me pela extensão do texto, mas são apenas alguns paralelos que eu não podia deixar de comentar.
Gi tentou ser a Gabrielle que lutaria pra salvar a Seraphin que A. tinha se tornado. Tentou tirá-la das garras desse “Dahak” que são as drogas, mas sem sucesso, sem um chakram ou um par de sais, teve que seguir em frente. Que falta fazem os heróis na vida real…
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