Meu Filho Xenite

Por:

Por Robson Cardoso dos Santos

         

Dedicado a uma pessoa que, assim como Gabrielle esteve com Xena, desejo que esteja comigo até o fim.

 

– Conta o que vai acontecer hoje, paieeeeê!
– Você não prefere que seja surpresa?
– Contaaaa!
– O episódio de hoje se chama “O Retorno de Callisto”. Preciso explicar o que vai acontecer? Não, né? Então vá arrumando aí o aparelho de DVD.
– Posso detonar aquele sorvete agora, pai?
– A janta fica pronta em duas horas, David. Depois você perde o apetite.
– Prometo que daí eu como o treco verde, pai!
– Rúcula? Humm… – avaliei a proposta, coçando o queixo. – Então ficamos combinados. Toca aqui, garoto – o cumprimento com aperto de antebraço era o nosso favorito. Eu sabia que ele mal ia comer no jantar, mas criança merece uns mimos de vez em quando.
Fui para a cozinha apanhar o sorvete no freezer. Uva pro meu moleque. Quando eu era guri, uva era o meu sabor favorito também.
– Anda logo, velho gaudério! – berrou ele.
Que jeito autoritário porém carinhoso de falar as coisas! Voltei sorrindo para a sala. David estava deitado de barriga num almofadão, já fuçando à toa nos botões do controle remoto. Era fim de tarde, o sol laranja tentava abater a barreira que eu fizera com as cortinas, a fim de dar ao ambiente um aspecto de cinema.
Sentei-me ao seu lado no carpete, passando-lhe a tacinha de sorvete. Dispensei a almofada que ele ajeitara pra mim, e apenas me recostei no sofá.
– Play! – vibrou ele, começando a lambuzar-se todo.
Xena e Gabrielle na tela… Eu sempre me emocionava com essa série. Apesar de já ter visto cada episódio mais de 15 vezes, e de adorar os de roteiro cômico, eu sempre tive preferência pelo lado tristonho da saga de Xena. Minha sintonia com essa vertente dramática se estabelecera ao longo dos anos. Com David eu seguia a cronologia exata dos episódios, a fim de mostrar a ele o amadurecimento da série.
David assistia a cada aventura com um brilho tão lindo nos olhos! Assim que ele nasceu, eu assistira a série inteira com ele em meus braços, mas é claro que bebês de colo não se recordam do que se passa à sua volta então. Agora, vendo os episódios pela segunda vez com ele, eu sabia que futuramente ele haveria de se recordar desse pedaço da infância que eu construía dia a dia com ele. Quando ele era bebezinho, a única coisa que acalmava sua choradeira era a soundtrack da série, o repertório oficial do quartinho dele, que o embalava em seu leve soninho no berço. Nem a própria mãe conseguia deixá-lo tão relaxado quanto LoDuca era capaz de fazer!

 

David sempre terminava de assistir aos episódios até o último instante, quando aquele “rosto” imponente da Renaissance era entrecortado por um raio. Às vezes fazia algum comentário engrolado a respeito do que acabara de assistir, resmungando com seus botões. Com freqüência saía dando socos e pontapés no ar, imitando Xena, e corria a pegar seus chakrams feitos com caixas de pizzas e arremessava contra as paredes, mirando em oponentes que só ele via. O fato de nunca voltarem para sua mão, assim como o de Xena retornava, não parecia frustrá-lo. Quando ele pegava o cabo da vassoura para incorporar a Gabrielle com seu cajado, eu tinha de correr pelo apartamento atrás dele. Tornei-me extremamente hábil com meus reflexos para poder apanhar a meio caminho do chão a avalanche de objetos que ele derrubava sem querer das estantes.
Findado o episódio, falei:
– Certo, filho. Agora vá tomar seu banho que eu vou preparar a sua rúcula… – reforcei a palavra e me deliciei com a careta disfarçada por uma falsa determinação que David me deu.
– Beleza, pai – e lá foi ele pro banheiro do meu quarto, aos tropéis, entoando a abertura da série.
Enquanto isso, preparei o grill elétrico para assar a carne. Flambei bananas e caprichei regando com vinagre a famigerada rúcula. Fui verificar o menino e por um momento achei que a banheira havia sido removida para o carpete do meu quarto, tamanha era a “molhação” naquele banheiro.
A campainha tocou.
– Quem vem aí, pai?
– Sua tia Gabrielle e seu tio Jônatan. Eles vieram pela rúcula
– Não precisa lembrar o tempo todo, pai!
– Seque-se – falei rindo, estendendo a toalha pro menino.

 

Corri pra porta para receber meus dois melhores amigos. Devido a uma namorada ciumenta, ao longo dos anos tornara-se difícil ver Gabrielle com tanta freqüência, mas ela sempre dava uma escapadinha pras reuniões de velhos amigos. Jônatan estava muito bem resolvido na vida, namorando um cara rico porém nada hollywoodiano, que era o que ele mais queria na adolescência.
– Oi, meu solteirão favorito! – roncou Gabrielle, radiante.
– Eaê, caminhoneira! – abracei-a forte. – É vinho que estou farejando aí?
– Poisé – respondeu Jônatan. – Imagine que ela não resistiu e veio dando umas goladas no banco do caroneiro!
– Humm, o vinho de Bacchus… – pensei alto. – Pelo menos não era ao volante, né?
– Tu sempre a citar Xena, não tem jeito mesmo… Cadê o centaurinho?
– Não o chame assim, Gabrielle…
– Filha duma bacante!!! – David surgiu no corredor e veio correndo para os braços da “tia” favorita, cabelos pingando.
– Centaurinho manco! Como tu estás grande!
– Não cresci nada do mês passado pra cá, tia Gaby!
– Estás insinuando que eu então devo ter diminuído de tamanho, garoto? Não questione os mais velhos! – brincou Gabrielle. – Tome aqui um presente da tia…
– Uauuuu! Um coliseu de brinquedo! – David estava extasiado. Sorri pensando nos episódios futuros em que César daria as caras em XENA.
Faceira com os agradecimentos elétricos de David, Gaby foi acendendo um cigarro.
– Vamos jantar que eu tô verde de fome! – foi falando Jônatan, fechando a porta.
– Verde me lembra rúcula
– PAPAI!!!
– Fome nada! Tu queres é mergulhar de cara nesse vinho aqui que eu tô ligada!
– E daí, cangaceira? Preciso me apressar senão tu logo secas esse garrafão…
Meus amigos… O que seria de mim sem eles…? Desde a mais tenra infância, nós mantínhamos com gosto nossa amizade. Uns buscavam os outros, e o tempo que passávamos sem nos vermos só fazia nossas reuniões mensais ficarem ainda mais divertidas. Um de meus sonhos já havia se realizado, que era poder publicar textos de minha autoria no jornal mais famoso da cidade. Trabalhava em casa, podia ser um pai presente e nada me dava mais prazer. Outro sonho que eu já via como peça concreta da minha felicidade eram esses dois amigos que nunca esqueciam de mim e que nunca permitiam que eu quisesse me “esquecer” deles!
Mas outro sonho… Ah, o outro sonho… Esse ficava apenas para nutrir minhas noites insones…
– Você parece distante, Robson…
– É o vinho fazendo efeito, queridaaa… – disse Gaby, entre uma garfada de bife.
– Distante? Eu tô bem aqui, gente!
– Não se faça de Joxer! Você tá avoado sim. É sobre o que estou pensando? Ou melhor, sobre QUEM estou pensando? – insistiu Jônatan, analítico como de costume.
– Dave, por que diabos estás comendo essa grama aí? – horrorizou-se Gaby. Notei que Jônatan, vendo-me salvo pelo gongo Gabrielle, revirou os olhos por detrás da taça de vinho.
Aproveitei a deixa:
– Gabrielle, que incentivo é esse, sua vegetariana desertora?! O menino precisa comer salada de vez em quando, e prometeu detonar essa rúcula aí…
– “Detonar” é só pro sorvete, pai. Pra rúcula é “engolir” – corrigiu David, com ar de obviedade.
Sorri. Levantei-me e fui colocar um rock pesado no som da sala.
– Já volto, pessoal. Acho que deixei meu notebook ligado.
Retirei-me da cozinha. Refugiado no corredor, sorri por estar ali com três das pessoas que mais amo na minha vida. Pensei em Xena e Gabrielle, na felicidade que uma experimentou com a outra. Mas eu não estava sozinho naquele corredor… Algo me acompanhava na penumbra… Algo que não se sentia afugentado pela música e risadas altas vindas da cozinha. Era o vazio, aquela sensação de ausência instalando-se dentro de mim sem qualquer pudor. Eu estava consciente da raiva que eu sentia de mim mesmo pela minha incrível habilidade de começar a me sentir miserável nos momentos mais inoportunos. Ali estava eu num ambiente feliz, com pessoas divertidas, uma delas aditivada pelo fulgor da juventude e outras duas por doses de álcool, mas eu sempre tinha essa brutal necessidade de me refugiar nas sombras. Acho que nas trevas é mais saudável para se recordar do passado, para lamentar o futuro que não vimos florescer, e cair na real do presente em que nos jogamos de guampas. Fico tonto… O escuro aqui dentro é mais denso do que o deste apartamento.
Bati com força a porta do banheiro para dar a impressão de que havia entrado ali, não sei se me ouviram da cozinha. Fui para meu quarto. Pelo menos não menti sobre meu notebook estar ligado. A escuridão do quarto era apenas conspurcada pela luz esbranquiçada da tela do PC que se pintava pelas paredes. Fui até a escrivaninha, curvei-me sobre o teclado e, tomando fôlego, abri a pasta de Imagens. Seu conteúdo, em grande parte, era formado por fotos de Xena e Gabrielle, outras tantas de viagens que eu fizera com Gabrielle e Jônatan, e mais uma montoeira de belas cenas do meu filho em diferentes idades. Mas havia uma pasta ali com o nome Rob e… Nunca consegui deletá-la… Isso adiantaria alguma coisa?
Promessas de viajar de encontro a uma pessoa ecoaram na minha cabeça. Se eu nunca tivesse assistido Xena, será que eu acreditaria no lance de almas-gêmeas? O tempo pode ser uma espera cruelmente demorada pra quem já sabe o que quer na vida. E eu sabia… Ah, eu sabia… Onde estaria minha outra asa uma hora dessas? Teria se completado por aí? Voava? Ou sentava, esperava?

 

Eu tinha muitas fotos dessa outra metade do vital acessório que me faltava nas costas. A outra asa. Mas pelo bem da minha sanidade emocional nunca mais tive coragem de olhar para aquelas fotos…
Me encaminhei para a janela. Abri a persiana e deixei o vento de gelo do anoitecer me dar uns tapas na cara. Eu tava mesmo precisando…
Esta minha história ainda teria mais temporadas? Onde foi que os laços perderam seus nós?
Fazia tempo que eu não chorava. Talvez eu fosse vazio no sentido literal da coisa, desprovido de uma carga de lágrimas que tão bem me faria derramar.
Dizem que não existe amor maior do que aquele que alimentamos por um filho nosso. Hoje eu sei disso. Mas aquele amor que tive pela Internet aos meus 20 anos, um amor que não consegui sentir depois com a mãe de David, ainda mexia comigo…
Hoje sei quão longe eu irei porque tenho meu filho por quem viver. Ele, apenas ele. Meu pilar de sustentação, que me chama à razão. Mas ainda hoje desejo ser arrebatado para a loucura que me prometeram mostrar anos atrás.
Soprei meu bafo de vinho no vidro da janela. Desenhei um nome no embaçado que se formou… Venho desenhando esse nome há muitos anos, em muitos lugares. Vem me protegendo como um amuleto. Me protege da besteira que eu gostaria de fazer comigo mesmo. O que fazer quando você precisa, quer, deseja, sangra, anseia, de uma pessoa e não mais de uma lembrança? Uma lembrança se perde com a ausência da voz, mas aquela pessoa parada na minha frente falaria por todas as palavras indizíveis pelo silêncio…
O tempo cura a dor, fecha as feridas, mas eu ainda vejo em mim as cicatrizes, lembro exatamente de cada palavra, das muitas palavras, que gravei no mesmo Orkut e no mesmo MSN de alguém. Como eu poderia esquecer das poesias, das declarações, dos passinhos pra dentro do abismo desse amor?

Continuo na beira desse abismo.

Por favor, me faça cair.

Voltei para a cozinha. O pessoal já terminara de jantar e agora dançava em cima de um palco improvisado: o sofá da sala. Uma alegria que se podia sentir em ondas. David me avistou encostado de ombro no batente da porta da cozinha e veio correndo ao meu encontro com a frase de “O Retorno de Callisto” engatilhada: “Você não escreveu!!!” Obviamente era uma referência à minha demora no quarto. Sua mãozinha envolveu meus dedos e me deixei conduzir para o meio daquele redemoinho de festa.
Com eles, pulei nos almofadões, usando o controle remoto como microfone, passei a imitar o cantor da música que explodia nas caixas de som. Gabrielle e Jônatan, por sua vez, dançavam uma espécie de tango, completamente fora de ritmo com a energia das guitarras no ar.
Chorei. Chorei de rir. Chorei porque a embriaguez do vinho não conseguia mais nublar minha mente, não era mais capaz de me fazer esquecer da pessoa que ainda hoje eu desejo tanto conhecer. Chorei pela distância, pelo tempo, pelo sonho.
Chorei por mim. Chorei por ele.
Chorei por chorar.
Eu ia sobrevivendo, sem sequer me sentir vivo.

 

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